Outra via que conduz igualmente à coesão social passa pela constituição e pela afirmação dos direitos urbanos. A partilha dos mesmos direitos produz reconhecimento; a sua operacionalização e o seu desenvolvimento constituem um projecto colectivo. A sua existência tem consequências para o urbanismo, porque se encarrega de os inscrever nos equipamentos e nos serviços. É possível fazer a cidade a partir da operacionalização dos direitos. O direito ao acesso para os deficientes motores, visuais ou cegos pode orientar um conjunto de escolhas respeitantes à arquitectura ou ao ordenamento do espaço público e tornar-se um recurso em vez de um constrangimento. A definição rigorosa, a articulação e a hierarquia dos direitos urbanos – com as dificuldades e controvérsias que isso acarreta – constituem um quadro de referência de um urbanismo preocupado com a coesão social. Amanhã o urbanismo concederá grande atenção a estes direitos urbanos, em especial aos novos direitos.
Quais são eles?
Para além dos já estabelecidos há mais tempo e que, sem se limitarem à cidade, continuam a ser fundamentalmente urbanos, como a liberdade de pensamento e de expressão, o direito à habitação e ao trabalho, Alain Bourdin enumera mais quatro que explicitam a necessidade de evolução de uma cidade moderna: o direito ao acolhimento, o direito à mobilidade e ao acesso, o direito a um ambiente satisfatório e o direito à segurança.
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O direito ao acolhimento aplica-se a todos os que chegam, tanto aos novos habitantes como aos que apenas estão de passagem.
A imigração é hoje examinada através de um debate sobre a identidade nacional. Seria muito mais claro atermo-nos à definição dos diplomas que regem o exercício do direito de acolhimento aos imigrantes e aos que pedem asilo. Encontrar-se-ia a questão da língua e do respeito pela lei republicana, mas evitando qualquer derrapagem substancialista (numa palavra, a divinização da identidade nacional) e não esquecendo que os limites do direito não fazem sentido a não ser que este se exerça efectivamente: nada se pode exigir daqueles a quem nada se oferece. De uma perspectiva diferente, que recepção no “mundo local” é dada aos turistas e aos visitantes, que forma de respeito é esperada por parte daqueles que ficam e como pode exprimir-se esta expectativa?
As respostas a estas questões ultrapassam o urbanismo, o qual pode, contudo, dar um contributo. Na Suíça, desenrolou-se uma reflexão sobre os equipamentos destinados aos que solicitavam asilo, sobre a sua localização e características. Esta desencadeou uma observação de conjunto sobre a cidade e a sua capacidade de aceitação de usos e modos de vida diferentes. A concentração de populações que entram nos bairros – rapidamente baptizados como “guetos” – mereceria que se perguntasse se a possível passagem por esses lugares não faz parte do direito ao acolhimento, desde que eles tenham ligações suficientes com o resto da cidade e de que deles se possa sair. O direito ao acolhimento tem necessidade de lugares, para que se exerçam algumas das suas dimensões base: a informação, a protecção provisória, e para que se possa explicitar o seu conteúdo, os acordos que o guiam, o contexto em que ele se exerce. Existem centros de interpretação, como os do património, que se definem como: “Um centro de interpretação tem por ambição fornecer ao público as chaves de leitura de um património, natural ou monumental, arqueológico ou industrial, ou até um conjunto urbanístico ou ambiental. Os ofícios e o seu saber-fazer são igualmente visados, dado que se trata não somente de transmitir conhecimentos aos visitantes mas também de os fazer amar o património e transmitir os seus valores”. Porque não criar centros de interpretação da cidade e da vida urbana, tendo por objecto o acolhimento?
O direito à mobilidade e ao acesso implica, em primeiro lugar, a possibilidade de deslocação pelo território e no interior das cidades. Esta é medida considerando a situação daqueles que têm dificuldade em deslocar-se, por razões económicas (custo), de deficiência, seja ela qual for, de localização longínqua muito pouco acessível ou isolada. Como permitir a um pobre que exerça o seu direito à mobilidade na equidade e em condições que não cause prejuízo à colectividade? Isto depende da responsabilidade social. Ao invés, que compromisso deve cada um de nós assumir para que o exercício do direito individual à mobilidade não vá contra o interesse geral? Esta perspectiva não se substitui ao trabalho dos especialistas de transporte e da mobilidade nem à reflexão em termos da oferta; dá-lhe orientações e constrangimentos, chegando nomeadamente a não fazer da transferência modal (do transporte individual para o colectivo) o critério principal, ou mesmo único, da avaliação da oferta de serviços de deslocação.
O direito ao acesso não se limita à mobilidade. Apoia-se na informação, nos serviços públicos e mais globalmente na oferta urbana. Comanda a definição do grau de privatização aceitável de certos lugares (espaços públicos, monumentos), equipamentos (centros comerciais), serviços, e intervém a par do cálculo económico no estabelecimento das tarifas. O direito de acesso aos recursos urbanos oferece uma tradução contemporânea da igualdade republicana. Sobre o plano operacional, introduz uma leitura da cidade que obriga a associar o funcionamento (dos equipamentos, por exemplo) à localização e a ultrapassar a redução das deslocações a fluxos de seres humanos considerados como bolas de bilhar.
O direito a um ambiente satisfatório equilibra o “todos ambientalmente culpados” que aparece hoje como dominante por via da questão das alterações climáticas. Através dele, afirma-se a subida em importância da consciência ecológica, exprimindo exigências que dizem respeito à qualidade do ar (nomeadamente no interior das habitações) e da água, da alimentação (e o acesso aos recursos alimentares que apresente garantias ambientais), à possibilidade de preservar e melhorar o seu estado físico com o exercício, à prevenção, etc. Um dos seus componentes formularse-á prudentemente como “a presença da natureza na cidade”. Tratar-se-á de um direito à biodiversidade, de um direito à paisagem? A questão continua a ser controversa, mas junta-se ao enigma da estilização da cultura. Em compensação, o carácter convencional deste direito é inquestionável. Ele implica, por exemplo, que cada um use de boa vontade ao fazer a triagem do lixo.
O direito à segurança não se confunde com uma estratégia, a da “tolerância zero”. Em primeiro lugar, porque a segurança se aplica para além dos riscos ligados à delinquência; de seguida porque a ausência total de risco em qualquer lugar, objectivo (de resto, irrealizável) implícito na ideia de tolerância zero, constitui uma definição entre outras, e perfeitamente discutível, do direito à segurança. Outra definição consistiria em dizer que o indivíduo deve poder dominar fortemente o seu ambiente e encontrar na cidade lugares onde ele não tem necessidade de estar sempre alerta para se defender. Isto alimenta a reflexão sobre a proximidade e a geografia dos “lugares-refúgio” (eventualmente diferenciada segundo os tipos de população) no espaço urbano. Contudo, a segurança continua a ser um sentimento, no sentido de uma coincidência entre si e si mesmo, como o sentimento da existência, e, como tal, não se cinde. Sem segurança no trabalho, no habitat, nas relações afectivas, há poucas possibilidades de que o direito à segurança urbana possa funcionar.
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Bourdin, Alain, (2011) O urbanismo depois da crise, Livros Horizonte.